domingo, 1 de julho de 2018

O Milagre de Teófilo

Nossa Senhora salva o clérigo que vendeu a alma ao diabo.
Na fachada lateral da catedral Notre Dame, Paris.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






É o caso de Teófilo que agora eu vou contar:
Um milagre tão precioso não é para se calar,
Porque ele nos faz entender e avaliar
O quanto é importante a Nossa Senhora rezar.

Não quero, se possível, no relato me alongar,
Contra vossa paciência poderia eu pecar,
Sei que a oração breve sói a Deus agradar,
Não foi o próprio Cristo o primeiro a nos ensinar?

Era uma vez, assim começa a legenda,
Um homem muito bom, nada mal de renda,
Teófilo, homem de paz, e nunca de contenda
De vida virtuosa, que dispensa emenda.

No lugar onde morava, em sua bela cidade,
Era chanceler do bispo, com muita autoridade
Gozava de boa fama e, para dizer a verdade,
Depois do senhor bispo, era dele a dignidade.

Teófilo era sóbrio e muito comedido,
Pessoa muito afável, por todos querido,
Homem culto e douto, de saber reconhecido,
Seu prestígio era muito difundido.

Dava aos pobres roupa e comida;
Aos peregrinos, abrigo e guarida,
Ensinava os pecadores a mudar de vida
E, pela penitência, evitar a recaída.

De modo que o bispo não tinha preocupação
Só a de cantar a missa e a de pregar sermão
Pois de tudo, tudo, nem cabe enumeração,
Cuidava Teófilo, com muita aplicação.

O bispo apreciava Teófilo sobremaneira
Pois ele o livrava de toda a trabalheira
E para o povo ele era como luz verdadeira
Seu fulgor iluminava a cidade inteira.

Mas, nesta vida, tudo tem sua hora,
E chegou, para o bispo, a vez de ir-se embora
Uma doença grave, sem chance de melhora
Levou-o à glória sem muita demora.

Santo Alberto Magno, bispo e Doutor.
O clero e o povo, como nunca adunado,
Todos diziam: “Teófilo no episcopado!
Com ele como bispo tudo será melhorado
Que seja ele o quanto antes consagrado”.

Teófilo respondeu com toda a simplicidade:
“Senhores, eu suplico, por favor, por caridade,
Eu não sou digno de uma tal autoridade
Outro que assuma essa grande dignidade”.

Os eclesiásticos da administração
Ante esta sua inabalável decisão
Não se sabe se contentes ou não 
Tiveram que fazer uma outra eleição.

Novo bispo, novo também o chanceler para mandar
E Teófilo, sem poder, começou a invejar
Porque o povo todo daquele lugar
Já não o ia mais, como antes, procurar.

E ele, que ao antigo bispo era tão chegado,
Começou a sentir-se, agora, postergado
E pela inveja cada vez mais dominado
Ele sentia-se totalmente transtornado.

E Teófilo achando-se muito desprezado,
Preterido, esquecido num canto, injustiçado
Por rancor, cada vez mais ferido e despeitado,
Caiu nas tramas de um grande pecado.

Foi a um famoso judeu cheio de vícios,
Versado em encantamentos e outros malefícios,
Que fazia feitiços e certos artifícios,
Guiado por Belzebu, em todos os seus ofícios.

E foi logo a esse falso traidor,
Fiel vassalo de tão mau senhor,
Que Teófilo, ó que horror!,
Foi solicitar um nefasto favor.

Ele, que se sentia tão desesperado
Foi perguntar ao judeu endiabrado,
Que tinha parte com o grande Renegado,
Como fazer para voltar a seu anterior estado.

Respondeu o judeu sem nenhuma hesitação:
“Não tenha você a menor preocupação
Pois vamos fazer uma boa combinação
Com `alguém` que certamente dará solução”.

Na calada da fria noite combinada
Teófilo, às escondidas, saiu de sua pousada
Para a entrevista que estava marcada
Com “alguém” numa tenebrosa encruzilhada.

O judeu que ia com ele no meio da escuridão
Disse: “As coisas muito bem estão.
Não me vá você estragar tudo, então,
Fazendo o sinal da cruz com sua mão”.

Teófilo assustou-se, quando pôde divisar
Grande multidão, com velas a queimar,
Com seu rei no meio, uma cena de arrepiar
E, por um instante, até pensou em voltar.

Deteve-o, com um gesto, aquele judeu traidor
E, determinadamente, levou-o a seu senhor,
Que era Satanás, o demo fingidor,
Para tentar dele obter o favor.

Disse o judeu: “Senhor rei coroado
Este homem foi chanceler do bispado
E, como tal, era por todos muito honrado
Mas, foi despedido e agora, é desprezado”.

Disse o diabo: “Não é lá de muito bom direito
De vassalo alheio, um outro tirar proveito
Mas renegue a Cristo, razão de nosso despeito
E farei que tudo lhe volte em estado perfeito”.

“Para seu caso há uma boa terapia:
Renegue a Cristo e a Santa Maria
Assine esta carta em uma única via
E voltará ao que era e até com melhoria”.

Teófilo a todo custo queria o sucesso
E não percebeu o engano o pobre obsesso,
Cúmulo de exagero e de incrível excesso:
Perder sua alma em tão barato processo.

Ninguém soube do tal contrato e do credor
Só Deus, que de tudo é bom conhecedor
E permitiu que ele voltasse ao esplendor
Só que, agora, meio pálido e sem cor.

O bispo, reconhecendo o quanto havia errado,
Fê-lo voltar àquele seu antigo estado:
Foi pelo povo da cidade ainda mais venerado
Teófilo ia recebendo a paga de seu pecado.

O resultado dessa sua imensa euforia,
Pelo sucesso que tinha na chancelaria,
Foi que ele, agora, se jacta e se vangloria,
Todo orgulhoso em sua vaidade vazia.

Mas é tão bom Deus, Nosso Senhor
E não deseja que pereça o pecador:
Teófilo foi acometido de mortal dor,
Para ver se de algo lhe valia o Traidor.

Todo o bem que ele fizera no passado
Não quis Deus que fosse malbaratado
E Teófilo recobrou o juízo adormentado,
Abriu os olhos e caiu em si despertado.

Aconteceu que nesse breve lúcido momento
Para ele tão rápido e também tão lento
Teófilo viu o que fez, com grande desalento
E, arrasado, sucumbiu ao desfalecimento:

“Ai de mim, pecador mesquinho e malfadado
Das alturas do bem, quem me terá derrubado?
Quanto ao corpo, estou no fim e desprezado
E quanto ao espírito, totalmente arruinado”.

“Morrerei como quem naufraga no mar
Não há quem vá por mim ante Deus rogar
Nem mesmo de Nossa Senhora posso esperar
Ela, a piedosa, que eu me atrevi a renegar”.

“Maldita hora em que cobicei a chancelaria
Procurar o diabo, que amaldiçoado dia!
Qual Judas, qual traidor pecado maior faria?
Não tivesse eu nascido, muito melhor seria”.

“Por que eu mesmo fui procurar acabar comigo?
Não passava necessidade, eu não era mendigo
Todos me respeitavam, o povo era meu amigo
Agora, a quem recorrer, onde encontrar abrigo?”.

“Bem sei que desta febre eu não vou escapar
Que não há médico que me possa curar
Só Santa Maria, a estrela do mar,
Mas com que cara poderia eu lhe rogar?”.

“Eu, miserável, mais fedorento que um cão
Cão sarnento e podre, não o que come pão
Ela não me vai ouvir, eu bem sei que não,
Pois foi contra ela que eu fui torpe e vilão”.

“Mas, seja como for, a ela vou me achegar,
Prostrar-me-ei na igreja, ante seu altar
Meus pecados, em jejuns, hei de chorar
Esperando a graça da Gloriosa quero finar”.



“Embora em minha loucura eu a tenha renegado
E, como um tolo, pelo judeu fui enganado
Apego-me firmemente a ela, confiado,
Dela nasceu o Salvador, por mim crucificado”.

“Não sei se Deus isto me irá autorizar:
Quero ante todos minha loucura proclamar
Mesmo não sabendo por onde começar
Nem se minha boca conseguirá falar”.

E sem contar nada sobre o plano que tinha
Foi ajoelhar-se ante o trono da Rainha,
“Dos desesperados és refúgio e madrinha
Haverá misericórdia para esta alma mesquinha?”.

“Tu que és a porta do Paraíso, Senhora;
Tu, de quem o Rei da Glória se enamora.
Olha com compaixão a este que implora
E seu horrendo pecado noite e dia chora”.

Quarenta dias durou esta penitência;
Noite e dia em constante permanência
Teófilo com inquebrantável paciência
Rogava assim à Senhora da clemência.

Até que ela apareceu, com ar meio zangado
“Por que tanto imploras, ó desgraçado?
Não tens teu senhor, o eterno Renegado?
Não sei quem quererá ser teu advogado?”.

“Mãe, disse Teófilo, por Deus e por caridade,
Não olhes a meus méritos, mas à tua bondade
Eu bem sei que tudo que dizes é verdade
Porque eu sou sujo e cheio de maldade”.

“Mas, não posso estar na penitência esperançado?
Não foi por ela que Davi foi perdoado?,
Madalena e até Pedro, após o Senhor ter negado?
E o povo de Nínive, que já estava condenado?”.

Quando ele se calou, falou Santa Maria:
“O teu caso, Teófilo, um grave problema me cria:
A ofensa a mim, eu bem que perdoaria
Mas a meu Filho, essa, eu não me atreveria”.

“Tenho um conselho para te dar com coerência:
Volta a meu Filho, roga a Ele com veemência
Senhor da vida, Sua onipotência
Manifesta sobretudo em perdão e clemência”.

“Senhora bendita, Rainha porta do Céu,
Teu nome é perfume e mais doce que o mel,
Há uma dificuldade, não esqueças, sou réu
Pois assinei aquele maldito papel”.

Disse Maria: “Saiba, antes de mais nada,
Senhor trapalhão, Senhor praga malvada,
Que a carta que em má hora deixou assinada
Está nos quintos dos infernos bem guardada”.

“Como a meu Filho eu pediria
Que empreendesse uma tal romaria?
Para lugar fétido, hodienda porcaria
Teria eu essa descabida ousadia?”.

“Senhora, bendita entre as mulheres
Atende-me sem demora, não esperes
Basta-Lhe o menor sinal que deres:
Teu Filho sempre quer o que tu queres”.

“Da falta, Teófilo, já recebeste o castigo
Fica tranqüilo, ouve o que te digo,
Eu vou ver, filho, como consigo
Resolver teu problema, deixa o caso comigo”.

Dizendo isto, desfez-se a aparição
E Teófilo que já tinha à Senhora tanta devoção
Foi tomado de imenso amor e infinita compunção
Passando dias e noites em jejum, pranto e oração.

A rainha da glória, Santa Maria,
Visitou-o ao final do terceiro dia
Com um rosto fulgurante, que trazia
As melhores notícias, paz e alegria:

“Fica sabendo, filho, que tuas orações
Teus grandes gemidos, tuas aflições
Chegaram ao Céu em grandes procissões
Para isto há anjos: para estas missões”.

“Eu intercedi por ti com empenho e vontade
Prostrei-me de joelhos ante a divina Majestade
E Deus te perdoou em sua infinita caridade
É importante agora tua firmeza na bondade”.

“Mãe, disse Teófilo, muitíssimo obrigado
Mas não estarei de todo despreocupado
Até o momento em que tenha recobrado
Aquela carta em que teu Filho foi renegado”.

“Estou cuidando de tudo, disse a Rainha,
Desde que decidiste pecar, sair da linha
Não resolverei, este probleminha?
Deixa também isto como incumbência minha”.

Dito isto, a Senhora desapareceu de seu lado
E Teófilo, caindo em si, até ficou assustado
De sua confiança: como tinha sido ousado!
E retomou a penitência decidido e esperançado.

Na terceira noite, com seu objetivo cumprido,
Veio Maria à casa em que ele estava recolhido
A Gloriosa, como sempre, discreta e sem ruído,
Trazia a carta com que ele a tinha traído.

Teófilo, ao ver que a carta tinha recuperado
E, da febre sentindo-se totalmente curado,
Prorrompeu em canto de louvor exaltado
Àquela que, maternalmente, o tinha livrado.

Dizendo: “Senhora boa, sempre sejas louvada
Sempre sejas bendita sempre glorificada
Tua misericórdia está mais que comprovada
Não há doçura que possa à tua ser comparada”.

No dia seguinte, festa de solene celebração
Juntou-se na igreja uma enorme multidão
Teófilo subiu ao púlpito com a carta na mão
E diante de todos narrou seu caso e conversão.

Mostrou a todos a carta que em sua mão trazia
Em que toda a força do mau contrato residia
O bispo, muito assustado, o sinal da cruz fazia
Mal acreditando nas coisas que ouvia.

Acabada a missa disse: “Vede este companheiro
Que tomado de loucura buscou mau conselheiro
E foi procurar o diabo, astuto e arteiro,
Para recobrar o ofício que tinha primeiro”.

“Se a Virgem gloriosa não lhe tivesse valido
Que torturas o infeliz não teria sofrido!
Mas, pela sua santa graça, ele foi socorrido
Recobrando a carta senão estaria perdido”.

O “Te Deum laudamus” foi fortemente entoado,
“Tibi laus tibi gloria” também foi rezado,
E “Salve Regina” foi pelo povo todo recitado
E outros doces hinos, canto e reza misturado.

Para a tal da carta, o bispo deu pronta solução,
Pois uma grande fogueira mandou fazer então
Teófilo, confessando, recebeu a absolvição
E, logo em seguida, também a Santa Comunhão.

O rosto de Teófilo estava todo iluminado,
Refletia-se nele a presença do sagrado
E o povo vendo-o, de luz transfigurado,
Mais o nome da Mãe de Deus era exaltado.

Logo a seguir, Teófilo do cargo se demitiu,
Todos os seus bens entre os pobres repartiu,
Aos que o conheciam, perdão ele pediu
E, após três dias, para a outra vida partiu.

Senhores, o grande milagre que acabo de narrar
Traz uma lição que se deve muito bem guardar:
Que para a salvação devemos penitência praticar
E a Gloriosa Mãe de Deus sempre, sempre honrar.

Ó mãe, de teu Gonçalo, não deixes de lembrar;
Ele, que teus milagres, tanto gosta de narrar
Por ele, Senhora, ao Criador podes rezar,
Pois é teu privilégio aos pecadores ajudar

E com a graça de Deus, Nosso Senhor, os salvar. Amém.


(Fonte: “El milagro de Teófilo” de Gonzalo de Berceo - o equilíbrio emocional medieval”, Tradução de Jean Lauand)



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