domingo, 30 de março de 2025

Os milagres da caridade: sublime equilíbrio da Igreja ante a miséria e a doença

Santa Isabel de Hungría
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs







(...) Contudo, os leprosos continuavam sempre a ser o objeto de sua predileção (de Santa Isabel de Hungria) e de algum modo até de sua inveja, pois (a lepra) era, entre todas as misérias humanas, aquela que melhor podia desapegar suas vítimas da vida.

Frei Gérard, Provincial dos franciscanos da Alemanha, que era, depois de mestre Conrad, o confidente mais íntimo de seus piedosos pensamentos, vindo um dia visitá-la, ela pôs-se a falar longamente sobre a santa pobreza.

Pelo fim da conversa exclamou:

“Ah!, meu Pai, o que eu quereria antes de tudo e do fundo do meu coração, seria ser tratada em todas as coisas como uma leprosa qualquer. Quisera que se fizesse para mim, como se faz para essa pobre gente, uma pequena choupana de palha e feno, e que se pendurasse diante da porta um pano, para prevenir os transeuntes, e uma caixa, para que nela se pudesse colocar alguma esmola”. 

Com essas palavras, perdeu o conhecimento e ficou numa espécie de êxtase, durante o qual o Padre Provincial, que a sustentava, ouviu-a cantar hinos sacros; depois disto voltou a si.

Seja-nos permitido, para explicar essas prodigiosas palavras de nossa santa, introduzir aqui em nossa narração alguns detalhes sobre o modo pelo qual a lepra e os desafortunados por ela atingidos, foram considerados durante os séculos católicos.

Naqueles tempos de fé universal, a Religião podia lutar de frente contra todos os males da sociedade, da qual ela era a soberana absoluta.

Àquela triste miséria suprema a Igreja opunha todas as mitigações que a fé e a piedade sabem gerar nas almas cristãs.

Não podendo extinguir os deploráveis resultados materiais do mal, ela sabia pelo menos acabar com a reprovação moral que podia prender-se àquelas infelizes vitimas.

Ela as revestia de uma espécie de sagração piedosa e as constituía como as representantes e pontífices de peso das dores humanas que Jesus Cristo viera carregar, e que os filhos de Sua Igreja têm como primeiro dever abrandar em seus irmãos.

A lepra tinha, pois, naquela época, qualquer coisa de sagrado aos olhos da Igreja e dos fiéis: era um dom de Deus, uma distinção especial, uma expressão, por assim dizer, da atenção divina.

Os anais da Normandia contam que um cavaleiro de muito ilustre linhagem, Raoultz Fitz-Giroie, um dos valentes do tempo de Guilherme o Conquistador, tendo-se tornado monge, pediu humildemente a Deus, como uma graça particular, ser atingido por uma lepra incurável, a fim de resgatar assim seus pecados.

Deveres da caridade, Holy Cross, Gilling East, Yorkshire
Deveres da caridade, Holy Cross, Gilling East, Yorkshire
E foi atendido... A mão de Deus, de Deus sempre justo e misericordioso, havia tocado um católico, o havia atingido de uma maneira misteriosa e inacessível para a ciência humana. Desde então havia alguma coisa de venerável em seu mal.

A soledade, a reflexão, e o retiro junto apenas de Deus, tornavam-se uma necessidade para o leproso.

Mas o amor e as preces de seus irmãos o seguiam em seu isolamento.

A Igreja soube conciliar a mais terna solicitude para com esses rebentos desafortunados de seu seio com as medidas exigidas pela saúde de todos para impedir a extensão do contágio.

Quiçá não haja em sua liturgia nada de mais tocante, e ao mesmo tempo de mais solene, do que o cerimonial denominado ‘separatio leprosorum’, com o qual procedia-se ao afastamento daquele que Deus havia atingido, nos povoados onde não havia hospital especialmente consagrado aos leprosos.

Celebrava-se, com a presença do leproso, a Missa dos mortos, após tendo benzido todos os utensílios que lhe deveriam servir na sua solidão.

E, depois de que cada assistente lhe tivesse dado sua esmola, o clero, precedido de Cruz e acompanhado por todos os fiéis, conduzia-o a uma cabana isolada que lhe era assinalada por moradia. Sobre o telhado dessa choupana o padre colocava terra do cemitério, dizendo ‘Sis mortuus mundo, vivens iterum Deo’ (“Morre para o mundo, e renasce para Deus!”).

O padre lhe dirigia a seguir um sermão consolador, no qual lhe fazia entrever as alegrias do Paraíso e sua comunhão espiritual com a igreja, cujas preces eram por ele adquiridas em sua solidão mais ainda do que anteriormente.

Depois ele plantava uma cruz de madeira diante da porta da cabana, aí colocava uma caixa para receber a esmola dos transeuntes, e todos se afastavam...

Apenas na Páscoa os leprosos pediam sair de seus “túmulos”, como o próprio Cristo, e entrar por alguns dias nas cidades e aldeias para participar das alegrias universais da Cristandade.

Quando morriam assim isolados, celebravam-se por eles os funerais com o ofício dos Confessores não-Pontífices.

O pensamento da Igreja tinha sido compreendido por todos seus filhos. Os leprosos recebiam do povo os nomes mais doces e mais consoladores; chamava-se-lhes os 'doentes de Deus’, os ‘queridos pobres de Deus’, os ‘bons’.

Gostava-se de lembrar que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sido designado, pelo Espírito Santo, como um leproso: ‘Et nos putavimus Eum quasi leprosum’.

Ele tinha um leproso como anfitrião quando Maria Magdalena veio Lhe ungir os pés; Ele escolhera o leproso Lázaro como símbolo da alma eleita. Ele, com freqüência, tomara essa forma para aparecer a Seus santos sobre a terra.

Acresce que foi principalmente depois das peregrinações na Terra Santa e nas Cruzadas que a lepra se tinha espalhado pela Europa. Essa origem aumentava seu caráter sagrado.

Uma Ordem de Cavalaria, a de São Lázaro, fora fundada em Jerusalém para se consagrar exclusivamente aos cuidados dos leprosos, e tinha um leproso como grão-mestre; e uma Ordem feminina devotara-se ao mesmo fim na mesma cidade, no hospital Saint-Jean l’Aumônier.

Certa vez que o Bispo Hugo de Lincoln – do Franco-Condado por nascimento e cartuxo por religião – celebrava a Missa, admitiu os leprosos ao ósculo da paz.

E como seu chanceler o lembrasse que São Martinho curava os leprosos beijando-os, o Bispo respondeu: “Sim, o ósculo de São Martinho curava a carne dos leprosos, mas a mim é o ósculo dos leprosos que cura minha alma”.

Entre os reis e os grandes da terra, nossa Isabel não foi a única a honrar Cristo nos sucessores de Lázaro. Príncipes ilustres e poderosos consideravam esse dever como uma das prerrogativas de suas coroas.

Roberto, Rei da França, visitava sem cessar seus hospitais. São Luís tratava-os com uma amizade toda fraterna, visitando-os no Quatre-Temps, e osculava suas chagas. Henrique III, Rei da Inglaterra, fazia o mesmo.

A condessa Sibila de Flandres, tendo acompanhado seu marido Teodorico a Jerusalém, em 1156, passava o tempo que o conde empregava em combater os infiéis no hospital de Saint-Jean l'Aumônier para aí cuidar dos leprosos.

Um dia em que ela lavava as chagas desses infortunados, sentiu, como nossa Isabel, seu coração sublevar-se contra tão repugnante ocupação.

Mas, logo em seguida, para se castigar, tomou na boca a água da qual acabava de se servir e a engoliu, dizendo a seu coração:

“É preciso que aprendas a servir a Deus nesses pobres; eis teu oficio, mesmo que arrebentes”. 

Quando seu marido deixou a Palestina, ela pediu-lhe permissão para aí ficar, a fim de consagrar o resto de seus dias ao serviço dos leprosos.

Seu irmão, Balduino III, Rei de Jerusalém, juntou seus rogos aos daquela heroína da caridade; o conde resistiu prolongadamente, e não consentiu em separar-se de Sibila senão depois de ter recebido do Rei, seu cunhado, como recompensa pelo sacrifício, uma gota do Sangue de Nosso Senhor, recolhido por José de Arimatéia, na ocasião da deposição da Cruz.

Santa Catarina de Siena
Ele, então, retornou só à sua pátria, levando consigo esse tesouro sagrado, que foi depositar em sua cidade de Bruges; e os piedosos povos de Flandres tomaram conhecimento com grande veneração de como seu conde tinha “vendido” sua esposa a Cristo e aos pobres, e como ele lhes trazia, como preço desse “negócio”, o Sangue de seu Deus.

Mas, sobretudo, foram os santos da Idade Média que testemunharam aos leprosos um devotamento sublime.

Santa Catarina de Siena teve suas mãos atingidas pela lepra ao cuidar de uma velha leprosa que ela própria quis amortalhar e enterrar.

Mas, depois de ter assim perseverado até o fim no sacrifício, viu suas mãos tornarem-se brancas e puras como as de um recém-nascido, e uma suave luz sair das partes que tinham sido mais atacadas.

São Francisco de Assis e Santa Clara, sua nobre seguidora; Santa Odília da Alsácia, Santa Judith da Polônia, Santo Edmundo de Canterbory, e mais tarde São Francisco Xavier e Santa Joana de Chantal compraziam-se em proporcionar aos leprosos os mais humildes serviços. Freqüentemente suas preces obtinham uma cura instantânea.

É no seio dessa gloriosa companhia que Isabel ocupava já lugar pelos anseios invencíveis de seu coração para o Deus que ela sempre via na pessoa dos pobres.

Mas, enquanto esperava poder gozar com eles as alegrias eternas no céu, nada bastava na terra para aquietar o ardor da compaixão que devorava seu coração, nem para curar os langores dessa alma enferma e dilacerada pelos sofrimentos dos seus irmãos.

(Autor: Charles de Montalembert, « Histoire de Sainte Élisabeth de Hongrie », Pierre Téqui, Libraire Éditeur, Paris, 1930, T.11, pp. 114-122)


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domingo, 16 de março de 2025

Assunção de Nossa Senhora: verdade de Fé promovida na Idade Média

Assunção, detalhe iluminura s. XV.
Columbia University, UTS MS 049
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






“A Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”

Com essas imorredouras palavras, o Santo Padre Pio XII definiu o dogma da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu em corpo e alma, solenemente proclamado no dia 1º de novembro de 1950, pela Constituição dogmática “Munificentissimus Deus”.

A solene proclamação desse augusto dogma veio coroar séculos de devoção a Nossa Senhora enquanto tendo sido levada aos Céus em corpo ressurreto e alma.

Na difusão desta verdade e desta devoção a Idade Média deu um contributo fundamental.

Assumpta est Maria, col. De Ricci, MS 090, f. 1.
A fé na Assunção vem dos tempos apostólicos. As primeiras referências escritas se encontram na liturgia oriental que no século IV já comemorava a subida ao Céu de Nossa Senhora na festa da “Lembrança de Maria”.

A festa passou a ser denominada “Dormição de Maria” no século VI e o imperador bizantino Maurício fixou a data de 15 de agosto, apenas confirmando um costume pré-existente.

Diversos Padres e Doutores da Igreja forneceram a justificação teológica. Mas, a doutrina da Assunção de Nossa Senhora foi verdadeiramente aprofundada nos tempos medievais.

No século XII o tratado Ad Interrogata, atribuído incorretamente a Santo Agostinho defendeu a assunção corporal da Mãe de Deus.

Santo Tomás de Aquino e outros grandes teólogos medievais declararam-se decisivamente em favor desta verdade.

Coroando estas aspirações, no século XVI, o Papa São Pio V reformou o Breviário e incluiu orações que defendiam essa verdade largamente espalhada nos séculos medievais precedentes.

Ouça: Maria subiu ao Céus (Assumpta est Maria in Coelo. Vésperas. Gregoriano)


In festo Assumptionis B M Virginis,
Columbia University, UTS MS 15.
Não espanta pois que quando o Papa Pio XII consultou o episcopado do mundo em 1946 na carta Deiparae Virginis Mariae, a resposta quase unanime é que deveria ser proclamada dogma.

“O dogma da Assunção de Nossa Senhora foi ardentemente desejado pelas almas católicas do mundo inteiro, porque é mais uma das afirmações a respeito da Mãe de Deus que A coloca completamente fora de paralelo com qualquer outra mera criatura e justifica o culto de hiperdulia que a Igreja lhe tributa.

“Nossa Senhora teve uma morte suavíssima, tão suave que é qualificada pelos autores, com uma propriedade de linguagem muito bonita, a “Dormição da Bem-Aventurada Virgem Maria” (Dormitio Beatae Mariae Virgine), indicando que Ela teve uma morte tão suave, tão próxima da ressurreição que, apesar de constituir verdadeira morte, entretanto é mais parecida a um simples sono.

“Nossa Senhora, depois da morte, ressuscitou como Nosso Senhor Jesus Cristo, foi chamada à vida por Deus e subiu aos Céus na presença de todos os Apóstolos ali reunidos, e de muitos fiéis.

“Essa Assunção representa para a Virgem Santíssima uma verdadeira glorificação aos olhos dos homens e de toda a humanidade até o fim do mundo, bem como proêmio da glorificação que Ela deveria receber no Céu.

“A Igreja triunfante inteira vai recebê-la, com todos os coros de anjos; Nosso Senhor Jesus Cristo a acolhe; São José assiste à cena; depois Ela é coroada pela Santíssima Trindade.

Assunção de Nossa Senhora, iluminura s. XV.
Columbia University, UTS MS 049

“É a glorificação de Nossa Senhora aos olhos de toda a Igreja triunfante e aos olhos de toda a Igreja militante.

“Com certeza, nesse dia, a Igreja padecente também recebeu uma efusão de graças extraordinárias.

“E não é temerário pensar que quase todas as almas que estavam no Purgatório foram então libertadas por Nossa Senhora nesse dia, de maneira que ali houve igualmente uma alegria enorme. Assim podemos imaginar como foi a glória de nossa Rainha.

“Algo disso repetir-se-á, creio, quando for instaurado o Reino de Maria, quando virmos o mundo todo transformado e a glória de Nossa Senhora brilhar sobre a Terra”.



(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, “Catolicismo”, agosto de 2001)




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domingo, 2 de março de 2025

O conde cruzado que se fez abade

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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O conde Raul de Chester, fundador da abadia cisterciense de Dieulacres, voltava da Cruzada na qual havia sido conquistada Damietta, e onde ele havia sido coberto de glória.

Uma violenta tempestade se abateu sobre o navio em que ele viajava.

Eram já dez horas da noite, e como o perigo aumentava a cada instante, o conde exortou os que viajavam a redobrarem os esforços por mais um minuto, prometendo-lhes que então a tempestade passaria.

Ele próprio se pôs a manobrar, e trabalhou mais do que qualquer um.

Em seguida o vento parou e o mar se acalmou.

Quando o piloto perguntou a Raul por que ele lhes tinha ordenado trabalhar apenas um minuto a mais, o conde respondeu:

"Porque, a partir daquela hora, os monges e outros religiosos, que meus ancestrais e eu estabelecemos em vários lugares, se preparavam para cantar o Ofício.

"Eu sabia que nesse momento eles estariam rezando, e esperava do Céu que a tempestade parasse, graças às orações deles".


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